domingo, 22 de junho de 2014

Um breve olhar sobre a poética de Vanessa Regina, por Leonardo Alves


Minha primeira impressão ao ler os poemas de Vanessa Regina foi a de um estranho encantamento. Poemas curtíssimos, com raros adjetivos, mas que conseguem, em poucos versos, levar um amálgama de sensações ao leitor. Poesia pictória, imagética e sensorial. E poesia elíptica: as elipses contribuem para a riqueza da expressão; o não dito em seus versos auxilia com presteza ao poder encantatório dos poemas. Metáforas bem articuladas, silêncios oportunos e um ritmo leve, fluido. Trabalho delicado de ourives, imantado com a perplexidade e a sensibilidade de uma alma ultrassensível.
Em muitos dos seus poemas, há uma quebra de expectativas, que se configura como um belo expediente formal. A linearidade é subvertida de forma graciosa. Não é a chave de ouro, como se poderia esperar, mas o momento de cisão, que dá a falsa impressão de fragmento:

afago tua têmpora prateada
cravo os dentes no teu sumo

e transbordam exílios

a fonte

         O belo e delicado poema acima mostra bem uma das facetas de sua lírica: o amor. Mas não há pieguice ou vulgaridade. O afeto é o disfarce do verso “afago tua têmpora prateada”; enquanto fulcro carnal é insinuado no segundo verso: “cravo os dentes no teu sumo”. Há plenitude nesse amor: carnal e afetividade se coadunam. Por outro lado, o hermetismo se mostra forte nos versos finais: o que seria esse lindo recorte “transbordam exílios”? Um amante andarilho, sem norte, que veio pousar no seu regaço? E o fecho, desestabilizador: “a fonte”. Não farei conjecturas. Deixo ao leitor tirar suas próprias conclusões. Resta a este humilde exegeta, dizer que tal verso, mínimo, ficou gravado na mente, como um labirinto e uma aprazível sensação de mistério. 
 Não é uma poesia fácil, de comunicação imediata com o leitor. É preciso pensar, reler para poder alcançar a sutileza do arsenal imagético e suas sugestões. Construir mentalmente suas metáforas inesperadas. Outro exemplo de sua poética enxuta e cintilante:

quisera eu 
oferecer as mãos vazias 
para o teu hálito de pedra

e um tempo, mínimo
para perscrutar o que não 
se soube do poema


           Nessa meia dúzia de versos, temos sobrepostos no mesmo contexto a poesia como meio de vida; e a vida frente à finitude. A força do texto vem da angústia de que se a morte batesse à porta do eu lírico, encontraria, ambas, inconclusas: 1) a vida, ainda não vivida na magnitude necessária; 2) e a poética, também nos seus dilemas de expressão. As mãos do eu lírico não estão vazias, plenas para encarar o “hálito de pedra” (morte): há muito peso, ainda não desvencilhado, de artefatos mundanos: dilemas, sobressaltos, solidões. De uma forma lacônica, está o grito: o tempo arguido ao infinito para que a vida e a poesia estejam prontas, antes de a “indesejada das gentes” (como diz Manuel Bandeira) bater à porta. Para a poeta, não existe uma coisa sem outra: vida é poesia; poesia é vida. Não há como desarmar esse laço que une as duas.
A lírica de Vanessa me traz, de bom grado, a lembrança de outra voz feminina. Não qualquer voz, mas a da grande poeta Emily Dickinson.  Há vários elementos que ligam a poesia atualíssima de Vanessa e a lírica de Emily: os diamantes pequeninos, mas robustos da linguagem, a ausência de título; uma lírica que esconde o sentimento dentro da imagem insólita e do voo arrojado das figuras de estilo.
O que é mais importante e mágico nesse encontro com a programática dickinsoniana é que ele não surgiu de uma imitação/emulação, mas de um acaso que rege as emoções dos seres sensíveis - dos poetas. Caso Vanessa imitasse a poeta estadunidense, não teríamos um terço da expressividade candente dos seus versos. Vanessa chegou ao patamar lírico, similar ao de Emily, por conta de uma irmandade de alma com a poeta de “There is a june when Corn is cut”. A forma intensa de ver o mundo: seja nas pequenas coisas do dia a dia, nos objetos cotidianos – expandindo a força expressiva da mesa, do armário, das teias de aranha; seja nos temas universais da lírica, como amor, o tempo e a morte. Essa aproximação que faço entre as duas tem um só objetivo: enfatizar a linhagem da escrita de Vanessa Regina.
Há um alargamento de solidão nos poemas de Vanessa. Uma ansiedade dramática de dizer sua dor, o deslocamento do ser na “terra devastada” e sua histeria. Mas esse “grito” é podado, aplainado, limado, até que surjam versos que cantam sussurrados, como a melodia doce de uma avena. O grito fica nas elipses. Cabe ao leitor buscar, por trás da musicalidade de seus versos, o áspero, o brado e o desespero: sentimentos atualíssimos, vindos do instinto de autopreservação do EU: não ser aniquilado dentro de uma conjuntura mundana cada vez mais reificada:

 das dores tantas 
 que movem mundos de dentro

 de silêncios que  pedem
 o voo típico 
  
 não há muito o que dizer
 não há
 
         O mundo de dentro não cabe no mundo de fora: é tempo de alegria, Iphone, evasão barata e sentimentos presos num uniforme – ser diferente é engendrar o caos. O mundo interno fica como murmúrio em seus versos. Mais vai se abrindo, à medida que sua lírica (em progresso) cresce com a intensidade de seus versos mais recentes:

aqui no sul profundo

olhos de marés tão rasas 

 não carrego afetos 
 que enfeitam janelas
 porque tenho sede 


          Dentro de suas temáticas, está também o amor irrealizado, ou melhor, o amor que é corrompido pela convivência desgastante e o marasmo. Não é novidade dizer que os temas da literatura são poucos. No entanto, é alentador saber que os mesmos temas podem ser abordados de formas tão díspares:

porque é domingo
diálogos impessoais
e uma polidez que me cai bem

naveguei até aqui
e vi cores de um azul infinito

âncora para a minha memória
navios estilhaçados sobre a mesa de jantar 


       O tema é o mesmo de um poema bem conhecido entre nós: “Soneto de Separação” (Vinicius). Mas a forma é tão outra, tão pessoal. Até hoje, me vem essa rica imagem verbal “navios estilhaçados sobre a mesa de jantar”. O amor que apodrece, como uma madeira jogada no quintal: mas eis que surge uma flor de lirismo, pequenina e única.
Se na forma, os poemas de Vanessa lembram Emily Dickinson, há alguns ecos de outra voz feminina: esta, sim, talvez lhe tenha influenciado a dicção, principalmente em versos mais sombrios, nos quais a conversa com a morte se torna familiar: Sylvia Plath. Eis um exemplo:

há quem diga que o vermelho cobrirá meus pés

e as manhãs tão serenas
- aquelas de um silêncio desastroso - 

permanecerão mínimas
sobre o assoalho pálido da cozinha

eu digo que não

         O eu lírico do poema mostra as imagens que insinuam suicídio: o vermelho cobrindo os pés, o “silêncio desastroso”. Mas a tensão chega ao fim com verso-fecho: “eu digo que não”. É o grito, já falado, da sua poesia. Esse debater-se no mundo interior: a inadaptação que faz com que os sentimentos transbordem. Sorte que há a mão da artesã para conter o superficial. Em sete versos, podemos vislumbrar um suicídio como fuga cogitada, a imagem desse ato e, finalmente a negação, como força anímica se sobrepondo a esse momento de contemplação.
         Vanessa me confessou ter demorado até chegar ao seu atual estilo: começou com poemas longos, caudalosos, uso reiterado de rimas. Aos poucos, foi abandonando expedientes que, segundo ela, não acrescentavam voz a sua poesia. De certa forma, a concisão, o hermetismo foi uma reação à primeira poesia, ainda em laboratório. Cortou rimas, adjetivos, excessos de sentimentalismos. Cortar: eis um verbo importante para a poesia de Vanessa. O que resta é o essencial. Afinal, por que se alongar, se algo pode ser dito em poucos versos? É pertinente recorrer a Ezra Pound, referindo-se ao verbete que designa “literatura” em alemão: dichten; a palavra significa também condensar.
E é nesse habitat que Vanessa se encontrou e transita com segurança: no verso curto (de 3 a 8 sílabas), na poesia sucinta, onde cada palavra, cada conjunção tem um efeito específico e especial. Sua lírica está em desenvolvimento. Mas tenho certeza que um livro nesse momento, com o melhor do que tem escrito, causaria grande comoção no meio literário. Um livro de Vanessa provaria uma verdade antiga, há muito proferida por Octavio Paz: o fim da tradição da ruptura. Não há compromisso com “ismos” salvadores da nova poesia, com cartilhas pós-modernas, com o pastiche aquoso, tão festejado por alguns intelectuais. Se seus versos são bons, deve-se a força lírica, expressão verbal laborada e um grande comprometimento com a metáfora viva: poesia ainda se faz com palavras.




Conheça o trabalho da poeta em Há quem diga que não era aquela música

2 comentários:

  1. Leitura lindíssima.
    Queria eu poder um dia dizer tão bonito da poesia imensa de Vanessa :)

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  2. Obrigado, Daniela. Fico contente com as tuas palavras. Palavras de uma grande poeta, também. A poesia da Vanessa cada vez mais profunda e sofisticada. Foi o mínimo que pude fazer para expressar minha admiração. Abraço!

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