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terça-feira, 12 de agosto de 2014

Chá com autores da aldeia: especial Rui Neves


imagem: acervo pessoal
Pois bem. Falar de Rui Neves é reavivar memórias mais que afetivas. Conheci o poeta alegretense em 2006, ao freqüentar os encontros da Sociedade Literária, projeto vinculado ao Teatro Mensageiros. Éramos muitos os aspirantes a poeta e Rui contribuía conosco com sua experiência de escrita. Passaram-se os anos e sempre o encontrava andando pelas ruas de Alegrete, e não raro, conversávamos sobre poesia. Rui sempre dizia que para escrever é necessário nos alimentarmos de leitura (certa vez, me confessou que lia mais de três horas por dia) e, principalmente, da observação acerca da realidade que nos cerca. A poesia deveria ser engendrada de fora para dentro e não ao contrário: “deixe fermentar tudo isso dentro de nós, vomite e peneire a gosma”, palavras do poeta tentando expressar seu processo criativo.  

 Além de sua extensa cultura e sabedoria, Rui tinha paixão por idiomas e usualmente carregava um pequeno dicionário no bolso do paletó. Era bonito de ver. Sua sede por conhecimento só aumentava minha admiração por este homem que passou a fazer parte de minhas referências poéticas e de minha vida acadêmica. Mas quis a vida levar o poeta para outra Pasárgada. Rui nos deixou em março deste ano e  não preciso dizer o quanto sua morte ainda me comove. Aprendi muito com este elegante e gentil senhor.

Neves publicou em vida apenas um livro intitulado Sedimentos da Manhã, editado em 1985. Transcrevo aqui alguns poemas:


messe

no agosto
o vento soprou forte e frio
tua voz ficou rude e destemida
do rosto do homem
na miséria da rua
fizeste
em
ti
um canto de revolta

as veredas da rua te afundam vales
e viram teu olhar comprometido

tua voz ecoou na coxilha e na várzea
e fizeste teu canto
o dos oprimidos

partiste em busca de foices
nas lavouras
e o trigal balançou espigas maduras

punhos cerrados vibram no ar e te segue
para quebrar os elos das correntes

haverá mais pão e riso na criança
e a paz fecundará o arrozal na safra

 
o homem da terra
com olhar de outono
sorrirá contigo
na festa da colheita.

 
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este dia não


desculpem
se o dia for só este

não me basta
se as calçadas
só me podem conceder
este quadro antigo
semblantes absurdos e famintos

atrás de vitrines coloridas
existe o dia

consumindo as energias dinâmicas da noite
e o queremos sem mordaça
uma conquista para o homem

desaprisionar o dia

quebrar as sinagogas financeiras
rostos desumanos comungam sua adoração
intercâmbio de papéis
jogam com o destino do homem

silenciar esta estranha balbúrdia
institucionalizada
liquidar este verme medonho
que quis deter o tempo com seus coturnos metálicos
libertar os raios do dia
lançar ao fogo as armas de calar o vento

o silêncio só
decretado
não teve
nunca
nossa convivência
mutilaremos a noite
falando de amor aos companheiros

para nós
o tempo é coisa possível
o diálogo que nos une
as épocas vindouras
é descoberto de agitação

e do tumulto
seguiremos cantando a manhã
como a concebemos
prometendo o tempo futuro
com grande ideal
amotinando o vento com
palavras de ordem                          
 

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fidelidade

na verdade
           eu poderia perder a vida
           com algo mais sensato
           ser prático
           preparar o tempo
           ordenar as coisas materiais

eu deveria fazer tarefas
                  dos homens de minha idade
                  ter vida regrada
                                       não muito simples

aparentando qualquer coisa mais


homem medíocre
                  sem muitas ideias
manter o rosto calmo
                    diariamente

o riso fácil
para tirarem bom juízo de mim

deixar as coisas intrincadas para outros
que venham resolver quando o tempo futuro
esquecer que estamos afundando
                      em comum
                      no mesmo charco

deixar de lado a amizade sincera
                          porque é clara

procurar
          entre os homens
                        gente astuta
                        perspicaz
que não seja gente de confiar
aprender a não confiar no homem
alguém comum e individual
não participar de nada com audácia
sempre uma reserva de segredos
                     segredo é uma força moral
saber das coisas vagamente
                           e quando aprofundar
                           fingir que desconheço
                           ser assim
                           é estar de acordo
                           é seguir uma regra geral

gertrudes
       não te preocupes
       nunca
      com coisas sensíveis
      vai ao clube
      dá bom dia
      ou boa tarde à vizinha
      fala do tempo
      escuta futebol

não te preocupes
      nunca
      com coisas sensíveis
      deixa que josé siga
      levando o passo ligeiro
      o gesto tresloucado
      pelas vielas da praça
      é bom não saber de tantas coisas
      nem ter tantos amigos
      e discutir
      o melhor é como fazem todos
      deixar que tudo ocorra
      ao redor
      depois de emitir uma opinião
      que agrade aos princípios
      lógicos formais

não
     gertrudes
             não posso
que pensará josé em noites de pântanos
                                            de sombras

o piano dormido
             lizt
             rapsódias
             guerras
             economia
1000 dedos executando a dança do fogo
andarilho
              andar de músicas ligeiras
              o passo deserto executando angústias
              o senso rítmico de meu próprio sonho


                

               Por hoje é só, até a próxima!

 

domingo, 22 de junho de 2014

Um breve olhar sobre a poética de Vanessa Regina, por Leonardo Alves


Minha primeira impressão ao ler os poemas de Vanessa Regina foi a de um estranho encantamento. Poemas curtíssimos, com raros adjetivos, mas que conseguem, em poucos versos, levar um amálgama de sensações ao leitor. Poesia pictória, imagética e sensorial. E poesia elíptica: as elipses contribuem para a riqueza da expressão; o não dito em seus versos auxilia com presteza ao poder encantatório dos poemas. Metáforas bem articuladas, silêncios oportunos e um ritmo leve, fluido. Trabalho delicado de ourives, imantado com a perplexidade e a sensibilidade de uma alma ultrassensível.
Em muitos dos seus poemas, há uma quebra de expectativas, que se configura como um belo expediente formal. A linearidade é subvertida de forma graciosa. Não é a chave de ouro, como se poderia esperar, mas o momento de cisão, que dá a falsa impressão de fragmento:

afago tua têmpora prateada
cravo os dentes no teu sumo

e transbordam exílios

a fonte

         O belo e delicado poema acima mostra bem uma das facetas de sua lírica: o amor. Mas não há pieguice ou vulgaridade. O afeto é o disfarce do verso “afago tua têmpora prateada”; enquanto fulcro carnal é insinuado no segundo verso: “cravo os dentes no teu sumo”. Há plenitude nesse amor: carnal e afetividade se coadunam. Por outro lado, o hermetismo se mostra forte nos versos finais: o que seria esse lindo recorte “transbordam exílios”? Um amante andarilho, sem norte, que veio pousar no seu regaço? E o fecho, desestabilizador: “a fonte”. Não farei conjecturas. Deixo ao leitor tirar suas próprias conclusões. Resta a este humilde exegeta, dizer que tal verso, mínimo, ficou gravado na mente, como um labirinto e uma aprazível sensação de mistério. 
 Não é uma poesia fácil, de comunicação imediata com o leitor. É preciso pensar, reler para poder alcançar a sutileza do arsenal imagético e suas sugestões. Construir mentalmente suas metáforas inesperadas. Outro exemplo de sua poética enxuta e cintilante:

quisera eu 
oferecer as mãos vazias 
para o teu hálito de pedra

e um tempo, mínimo
para perscrutar o que não 
se soube do poema


           Nessa meia dúzia de versos, temos sobrepostos no mesmo contexto a poesia como meio de vida; e a vida frente à finitude. A força do texto vem da angústia de que se a morte batesse à porta do eu lírico, encontraria, ambas, inconclusas: 1) a vida, ainda não vivida na magnitude necessária; 2) e a poética, também nos seus dilemas de expressão. As mãos do eu lírico não estão vazias, plenas para encarar o “hálito de pedra” (morte): há muito peso, ainda não desvencilhado, de artefatos mundanos: dilemas, sobressaltos, solidões. De uma forma lacônica, está o grito: o tempo arguido ao infinito para que a vida e a poesia estejam prontas, antes de a “indesejada das gentes” (como diz Manuel Bandeira) bater à porta. Para a poeta, não existe uma coisa sem outra: vida é poesia; poesia é vida. Não há como desarmar esse laço que une as duas.
A lírica de Vanessa me traz, de bom grado, a lembrança de outra voz feminina. Não qualquer voz, mas a da grande poeta Emily Dickinson.  Há vários elementos que ligam a poesia atualíssima de Vanessa e a lírica de Emily: os diamantes pequeninos, mas robustos da linguagem, a ausência de título; uma lírica que esconde o sentimento dentro da imagem insólita e do voo arrojado das figuras de estilo.
O que é mais importante e mágico nesse encontro com a programática dickinsoniana é que ele não surgiu de uma imitação/emulação, mas de um acaso que rege as emoções dos seres sensíveis - dos poetas. Caso Vanessa imitasse a poeta estadunidense, não teríamos um terço da expressividade candente dos seus versos. Vanessa chegou ao patamar lírico, similar ao de Emily, por conta de uma irmandade de alma com a poeta de “There is a june when Corn is cut”. A forma intensa de ver o mundo: seja nas pequenas coisas do dia a dia, nos objetos cotidianos – expandindo a força expressiva da mesa, do armário, das teias de aranha; seja nos temas universais da lírica, como amor, o tempo e a morte. Essa aproximação que faço entre as duas tem um só objetivo: enfatizar a linhagem da escrita de Vanessa Regina.
Há um alargamento de solidão nos poemas de Vanessa. Uma ansiedade dramática de dizer sua dor, o deslocamento do ser na “terra devastada” e sua histeria. Mas esse “grito” é podado, aplainado, limado, até que surjam versos que cantam sussurrados, como a melodia doce de uma avena. O grito fica nas elipses. Cabe ao leitor buscar, por trás da musicalidade de seus versos, o áspero, o brado e o desespero: sentimentos atualíssimos, vindos do instinto de autopreservação do EU: não ser aniquilado dentro de uma conjuntura mundana cada vez mais reificada:

 das dores tantas 
 que movem mundos de dentro

 de silêncios que  pedem
 o voo típico 
  
 não há muito o que dizer
 não há
 
         O mundo de dentro não cabe no mundo de fora: é tempo de alegria, Iphone, evasão barata e sentimentos presos num uniforme – ser diferente é engendrar o caos. O mundo interno fica como murmúrio em seus versos. Mais vai se abrindo, à medida que sua lírica (em progresso) cresce com a intensidade de seus versos mais recentes:

aqui no sul profundo

olhos de marés tão rasas 

 não carrego afetos 
 que enfeitam janelas
 porque tenho sede 


          Dentro de suas temáticas, está também o amor irrealizado, ou melhor, o amor que é corrompido pela convivência desgastante e o marasmo. Não é novidade dizer que os temas da literatura são poucos. No entanto, é alentador saber que os mesmos temas podem ser abordados de formas tão díspares:

porque é domingo
diálogos impessoais
e uma polidez que me cai bem

naveguei até aqui
e vi cores de um azul infinito

âncora para a minha memória
navios estilhaçados sobre a mesa de jantar 


       O tema é o mesmo de um poema bem conhecido entre nós: “Soneto de Separação” (Vinicius). Mas a forma é tão outra, tão pessoal. Até hoje, me vem essa rica imagem verbal “navios estilhaçados sobre a mesa de jantar”. O amor que apodrece, como uma madeira jogada no quintal: mas eis que surge uma flor de lirismo, pequenina e única.
Se na forma, os poemas de Vanessa lembram Emily Dickinson, há alguns ecos de outra voz feminina: esta, sim, talvez lhe tenha influenciado a dicção, principalmente em versos mais sombrios, nos quais a conversa com a morte se torna familiar: Sylvia Plath. Eis um exemplo:

há quem diga que o vermelho cobrirá meus pés

e as manhãs tão serenas
- aquelas de um silêncio desastroso - 

permanecerão mínimas
sobre o assoalho pálido da cozinha

eu digo que não

         O eu lírico do poema mostra as imagens que insinuam suicídio: o vermelho cobrindo os pés, o “silêncio desastroso”. Mas a tensão chega ao fim com verso-fecho: “eu digo que não”. É o grito, já falado, da sua poesia. Esse debater-se no mundo interior: a inadaptação que faz com que os sentimentos transbordem. Sorte que há a mão da artesã para conter o superficial. Em sete versos, podemos vislumbrar um suicídio como fuga cogitada, a imagem desse ato e, finalmente a negação, como força anímica se sobrepondo a esse momento de contemplação.
         Vanessa me confessou ter demorado até chegar ao seu atual estilo: começou com poemas longos, caudalosos, uso reiterado de rimas. Aos poucos, foi abandonando expedientes que, segundo ela, não acrescentavam voz a sua poesia. De certa forma, a concisão, o hermetismo foi uma reação à primeira poesia, ainda em laboratório. Cortou rimas, adjetivos, excessos de sentimentalismos. Cortar: eis um verbo importante para a poesia de Vanessa. O que resta é o essencial. Afinal, por que se alongar, se algo pode ser dito em poucos versos? É pertinente recorrer a Ezra Pound, referindo-se ao verbete que designa “literatura” em alemão: dichten; a palavra significa também condensar.
E é nesse habitat que Vanessa se encontrou e transita com segurança: no verso curto (de 3 a 8 sílabas), na poesia sucinta, onde cada palavra, cada conjunção tem um efeito específico e especial. Sua lírica está em desenvolvimento. Mas tenho certeza que um livro nesse momento, com o melhor do que tem escrito, causaria grande comoção no meio literário. Um livro de Vanessa provaria uma verdade antiga, há muito proferida por Octavio Paz: o fim da tradição da ruptura. Não há compromisso com “ismos” salvadores da nova poesia, com cartilhas pós-modernas, com o pastiche aquoso, tão festejado por alguns intelectuais. Se seus versos são bons, deve-se a força lírica, expressão verbal laborada e um grande comprometimento com a metáfora viva: poesia ainda se faz com palavras.




Conheça o trabalho da poeta em Há quem diga que não era aquela música

domingo, 15 de dezembro de 2013

Mais uma primavera, por Maria Luiza Vargas Ramos

#Chá com autores da aldeia
imagem: acervo pessoal da autora
# autores alegretenses

           Começa hoje a tão decantada estação do ano que, para mim, já começa no dia errado. Se o Dia da Árvore é dia 21 de setembro e se outras estações iniciam nesse dia, por que a primavera só vai começar no dia 23?

                Penso que a euforia que cerca esta estação deve-se, sobretudo, aos rigores do inverno e à vontade de guardar os casacos e ficar até mais tarde na rua.
               Claro que a beleza das flores é um componente importante, aliás, o melhor de todos, pois é inegável o prazer visual que temos ao passar por praças e canteiros floridos.
               Os pássaros saúdam a primavera alegremente, enchendo as manhãs de cantos e beijando cada flor.
               É uma estação bonita, não resta dúvida!
              Agora, tem outro lado bem desagradável. Os ventos, as tempestades, a poeira e o pólen martirizando os alérgicos, a dança dos casacos numa alternância cansativa, enfim, passamos mais frio e mais calor, uma vez que esfria e esquenta várias vezes num mesmo dia.
              Nasci numa Primavera, meu irmão e meu filho mais velho também, quem sabe por isso temos nossos rompantes primaveris de vez em quando; florescemos, ou armamos tempestades.
             As violetas da varanda estão sorridentes, os bem-te-vis alvoroçados, a chuva deu uma trégua – é Primavera, mais uma vez!
            Felizes somos nós que aqui estamos para admirá-la!


(Publicado em: http://cinquentinhas.blogspot.com.br/2013/09/mais-uma-primavera)


Maria Luiza Vargas Ramos nasceu em Alegrete em 9 de novembro de 1952. Doutora em Letras pela UFRGS, tem diversos livros publicados e inúmeras participações em antologias, além de premiações. Tem três livros de crônicas publicados: Gazeteando (2007); Simplesmente Maria (2012) e Pimenta de Cheiro (2013). Um de contos:  Decifra-me (2013); e outro de literatura infantil A Menina do Não e Outras Histórias (2013). Atualmente, vive em Florianópolis, Santa Catarina, e escreve em seu blog Simplesmente Maria.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

vermelho mel, por Vânia Aurélio


                                                 #chá com autores da aldeia
                                                 #autores alegretenses



sirvo complacente o vinho que cai
é uma amante que está em mim.
gozamos a fortuna e o risco de sermos sós.
ela cai vermelho
eu caio mel
caímos por algo maior do que a dor.
- é fácil brindar o que cai.
é o vinho que cai,
é a amante que está,
é a dor que corta o vazio solitário
de todas as plantas.

[Vermelho Mel. Natal: Sebo Vermelho Edições, 2011]


Vânia Aurélio, natural de Alegrete, é publicitária, empresária e poeta. Publicou os livros Pele (1995); Borboletas em Mim (1997) e Vermelho Mel (2011). Vive em Natal/RN.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Messe, por Rui Neves

imagem: acervo pessoal.

#chá com autores da aldeia
#autores alegretenses


no agosto
o vento soprou forte e frio
tua voz ficou rude e destemida
do rosto do homem
na miséria da rua
fizeste
em
ti
um canto de revolta


as veredas da rua te afundam vales
e viram teu olhar comprometido

tua voz ecoou na coxilha e na várzea
e fizeste teu canto
o dos oprimidos

partiste em busca de foices
nas lavouras
e o trigal balançou espigas maduras

punhos cerrados vibram no ar e te segue
para quebrar os elos das correntes

haverá mais pão e riso na criança
e a paz fecundará o arrozal na safra

o homem da terra
com olhar de outono
sorrirá contigo
na festa da colheita.

[Sedimentos da Manhã, 1985. pg. 6]


 Rui Neves é alegretense. Publicou o livro Sedimentos da Manhã (1985), além de colaborar com revistas e jornais locais. Vive em Alegrete.