Minha primeira
impressão ao ler os poemas de Vanessa Regina foi a de um estranho encantamento.
Poemas curtíssimos, com raros adjetivos, mas que conseguem, em poucos versos, levar
um amálgama de sensações ao leitor. Poesia pictória, imagética e sensorial. E poesia
elíptica: as elipses contribuem para a riqueza da expressão; o não dito em seus
versos auxilia com presteza ao poder encantatório dos poemas. Metáforas bem
articuladas, silêncios oportunos e um ritmo leve, fluido. Trabalho delicado de
ourives, imantado com a perplexidade e a sensibilidade de uma alma ultrassensível.
Em muitos dos
seus poemas, há uma quebra de expectativas, que se configura como um belo
expediente formal. A linearidade é subvertida de forma graciosa. Não é a chave
de ouro, como se poderia esperar, mas o momento de cisão, que dá a falsa
impressão de fragmento:
afago tua têmpora prateada
cravo os dentes no teu sumo
e transbordam exílios
a fonte
cravo os dentes no teu sumo
e transbordam exílios
a fonte
O belo e delicado poema acima mostra
bem uma das facetas de sua lírica: o amor. Mas não há pieguice ou vulgaridade.
O afeto é o disfarce do verso “afago tua têmpora prateada”; enquanto fulcro
carnal é insinuado no segundo verso: “cravo os dentes no teu sumo”. Há
plenitude nesse amor: carnal e afetividade se coadunam. Por outro lado, o
hermetismo se mostra forte nos versos finais: o que seria esse lindo recorte “transbordam
exílios”? Um amante andarilho, sem norte, que veio pousar no seu regaço? E o
fecho, desestabilizador: “a fonte”. Não farei conjecturas. Deixo ao leitor tirar
suas próprias conclusões. Resta a este humilde exegeta, dizer que tal verso,
mínimo, ficou gravado na mente, como um labirinto e uma aprazível sensação de
mistério.
Não é uma poesia fácil, de comunicação
imediata com o leitor. É preciso pensar, reler para poder alcançar a sutileza do
arsenal imagético e suas sugestões. Construir mentalmente suas metáforas inesperadas.
Outro exemplo de sua poética enxuta e cintilante:
quisera eu
oferecer as mãos vazias
para o teu hálito de pedra
oferecer as mãos vazias
para o teu hálito de pedra
e um tempo, mínimo
para perscrutar o que não
se soube do poema
Nessa meia dúzia de versos, temos
sobrepostos no mesmo contexto a poesia como meio de vida; e a vida frente à finitude.
A força do texto vem da angústia de que se a morte batesse à porta do eu lírico,
encontraria, ambas, inconclusas: 1) a vida, ainda não vivida na magnitude
necessária; 2) e a poética, também nos seus dilemas de expressão. As mãos do eu
lírico não estão vazias, plenas para encarar o “hálito de pedra” (morte): há
muito peso, ainda não desvencilhado, de artefatos mundanos: dilemas,
sobressaltos, solidões. De uma forma lacônica, está o grito: o tempo arguido ao
infinito para que a vida e a poesia estejam prontas, antes de a “indesejada das
gentes” (como diz Manuel Bandeira) bater à porta. Para a poeta, não existe
uma coisa sem outra: vida é poesia; poesia é vida. Não há como desarmar esse
laço que une as duas.
A lírica de
Vanessa me traz, de bom grado, a lembrança de outra voz feminina. Não qualquer voz,
mas a da grande poeta Emily Dickinson. Há
vários elementos que ligam a poesia atualíssima de Vanessa e a lírica de Emily:
os diamantes pequeninos, mas robustos da linguagem, a ausência de título; uma
lírica que esconde o sentimento dentro da imagem insólita e do voo arrojado das
figuras de estilo.
O que é mais
importante e mágico nesse encontro com a programática dickinsoniana é que ele não
surgiu de uma imitação/emulação, mas de um acaso que rege as emoções dos seres
sensíveis - dos poetas. Caso Vanessa imitasse a poeta estadunidense, não
teríamos um terço da expressividade candente dos seus versos. Vanessa chegou ao
patamar lírico, similar ao de Emily, por conta de uma irmandade de alma com a
poeta de “There is a june when Corn is cut”. A forma intensa de ver o mundo:
seja nas pequenas coisas do dia a dia, nos objetos cotidianos – expandindo a
força expressiva da mesa, do armário, das teias de aranha; seja nos temas
universais da lírica, como amor, o tempo e a morte. Essa aproximação que faço
entre as duas tem um só objetivo: enfatizar a linhagem da escrita de Vanessa
Regina.
Há um
alargamento de solidão nos poemas de Vanessa. Uma ansiedade dramática de dizer
sua dor, o deslocamento do ser na “terra devastada” e sua histeria. Mas esse
“grito” é podado, aplainado, limado, até que surjam versos que cantam sussurrados,
como a melodia doce de uma avena. O grito fica nas elipses. Cabe ao leitor
buscar, por trás da musicalidade de seus versos, o áspero, o brado e o
desespero: sentimentos atualíssimos, vindos do instinto de autopreservação do
EU: não ser aniquilado dentro de uma conjuntura mundana cada vez mais reificada:
das
dores tantas
que movem mundos de dentro
de silêncios que pedem
o voo típico
não há muito o que dizer
não há
que movem mundos de dentro
de silêncios que pedem
o voo típico
não há muito o que dizer
não há
O mundo de dentro não cabe no
mundo de fora: é tempo de alegria, Iphone, evasão barata e sentimentos presos
num uniforme – ser diferente é engendrar o caos. O mundo interno fica como
murmúrio em seus versos. Mais vai se abrindo, à medida que sua lírica (em
progresso) cresce com a intensidade de seus versos mais recentes:
aqui no sul profundo
olhos de marés tão rasas
não carrego afetos
que enfeitam janelas
porque tenho sede
olhos de marés tão rasas
não carrego afetos
que enfeitam janelas
porque tenho sede
Dentro de suas temáticas, está
também o amor irrealizado, ou melhor, o amor que é corrompido pela convivência
desgastante e o marasmo. Não é novidade dizer que os temas da literatura são
poucos. No entanto, é alentador saber que os mesmos temas podem ser abordados
de formas tão díspares:
porque é domingo
diálogos impessoais
e uma polidez que me cai bem
naveguei até aqui
e vi cores de um azul infinito
âncora para a minha memória
navios estilhaçados sobre a mesa de jantar
diálogos impessoais
e uma polidez que me cai bem
naveguei até aqui
e vi cores de um azul infinito
âncora para a minha memória
navios estilhaçados sobre a mesa de jantar
O tema é o mesmo de um poema bem
conhecido entre nós: “Soneto de Separação” (Vinicius). Mas a forma é tão outra,
tão pessoal. Até hoje, me vem essa rica imagem verbal “navios estilhaçados
sobre a mesa de jantar”. O amor que apodrece, como uma madeira jogada no
quintal: mas eis que surge uma flor de lirismo, pequenina e única.
Se na forma,
os poemas de Vanessa lembram Emily Dickinson, há alguns ecos de outra voz
feminina: esta, sim, talvez lhe tenha influenciado a dicção, principalmente em versos
mais sombrios, nos quais a conversa com a morte se torna familiar: Sylvia
Plath. Eis um exemplo:
há quem diga que o vermelho cobrirá
meus pés
e as manhãs tão serenas
- aquelas de um silêncio desastroso -
permanecerão mínimas
sobre o assoalho pálido da cozinha
eu digo que não
e as manhãs tão serenas
- aquelas de um silêncio desastroso -
permanecerão mínimas
sobre o assoalho pálido da cozinha
eu digo que não
O eu lírico do poema mostra as
imagens que insinuam suicídio: o vermelho cobrindo os pés, o “silêncio
desastroso”. Mas a tensão chega ao fim com verso-fecho: “eu digo que não”. É o
grito, já falado, da sua poesia. Esse debater-se no mundo interior: a
inadaptação que faz com que os sentimentos transbordem. Sorte que há a mão da
artesã para conter o superficial. Em sete versos, podemos vislumbrar um
suicídio como fuga cogitada, a imagem desse ato e, finalmente a negação, como
força anímica se sobrepondo a esse momento de contemplação.
Vanessa
me confessou ter demorado até chegar ao seu atual estilo: começou com poemas
longos, caudalosos, uso reiterado de rimas. Aos poucos, foi abandonando
expedientes que, segundo ela, não acrescentavam voz a sua poesia. De certa
forma, a concisão, o hermetismo foi uma reação à primeira poesia, ainda em
laboratório. Cortou rimas, adjetivos, excessos de sentimentalismos. Cortar: eis
um verbo importante para a poesia de Vanessa. O que resta é o essencial.
Afinal, por que se alongar, se algo pode ser dito em poucos versos? É
pertinente recorrer a Ezra Pound, referindo-se ao verbete que designa “literatura”
em alemão: dichten; a palavra significa
também condensar.
E é nesse habitat que Vanessa se encontrou e
transita com segurança: no verso curto (de 3 a 8 sílabas), na poesia sucinta,
onde cada palavra, cada conjunção tem um efeito específico e especial. Sua
lírica está em desenvolvimento. Mas tenho certeza que um livro nesse momento,
com o melhor do que tem escrito, causaria grande comoção no meio literário. Um
livro de Vanessa provaria uma verdade antiga, há muito proferida por Octavio
Paz: o fim da tradição da ruptura. Não há compromisso com “ismos” salvadores da
nova poesia, com cartilhas pós-modernas, com o pastiche aquoso, tão festejado
por alguns intelectuais. Se seus versos são bons, deve-se a força lírica,
expressão verbal laborada e um grande comprometimento com a metáfora viva:
poesia ainda se faz com palavras.
Conheça o trabalho da poeta em Há quem diga que não era aquela música
Conheça o trabalho da poeta em Há quem diga que não era aquela música
Leitura lindíssima.
ResponderExcluirQueria eu poder um dia dizer tão bonito da poesia imensa de Vanessa :)
Obrigado, Daniela. Fico contente com as tuas palavras. Palavras de uma grande poeta, também. A poesia da Vanessa cada vez mais profunda e sofisticada. Foi o mínimo que pude fazer para expressar minha admiração. Abraço!
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